quarta-feira, 30 de setembro de 2009

É a última que morre

Como faço todos os dias pela manhã, tarde ou noite, e aí vai depender da minha disposição, inspiração e o tamanho do saco cheio, saio pra caminhar pelo núcleo de Carajás. Tenho usado de vários recursos para não só aliviar a hora caminhada mas para dar um plus a ela. Sabe como é, ainda não me livrei desta mania de aproveitar o tempo fazendo mais de uma coisa ao mesmo tempo. Como já notei que é patológico e que não tem cura, então pelo menos faço com a determinação dos teimosos.

Mas como ia dizendo, e esta é outra mania, de desviar do assunto, trilhar por atalhos e talvez chegar a lugar nenhum, ou quem sabe chegar a todos os lugares. Aí vai depender dos meus pacientes leitores, que aliás, quero agradecer o incentivo pois, apesar de tudo, continuam gastando seu precioso tempo lendo meu blog.

Voltando ao trilho de novo, quero dizer, a minha caminhada diária, mas nem por isto rotineira no sentido mais chato da palavra, para dizer que, meus recursos para torná-la um delicioso dever a cumprir, variam desde arquivos de música ou English listenings no walkman até a compras no mercado. Vario também os locais por onde ando, posso fazer o núcleo ficar circular, quadrado ou ziguezagueado, fazendo então a performance refletir um pouco o estado da minha cabeça.

Dependendo de por onde ando, encontro os mais variados seres: vegetais, animais, minerais e até humanos. Outro dia topei com um pedaço de minério de ferro no caminho e sei que Drummond, mais do que ninguém, entenderia muito bem esta minha metáfora.

Quanto aos seres animais, ando meio desapontada pois ainda não cruzei com nenhuma onça ou cobra de respeito, apesar de ouvir muitos boatos de que felinos pretos andam se escondendo debaixo de carros. Os quatis não contam mais, já são da família; quanto às cotias, nem se fala, estão mais pop do que o Lula.

Quanto aos humanos, estes se encontram dentro de suas tocas, na maioria das vezes, mas se a sorte estiver do seu lado, vai vê-los molhando jardim, lavando carro, empurrando carrinho de bebê, brincando na rua, fazendo mercado, indo ao cinema (média de 4 pessoas por sessão, exagerando um pouco), andando de bicicleta e caminhando.

Finalmente cheguei onde queria chegar, ufa! Estava caminhando hoje, quando descobri uma porção de verde cercada de verde por todos os lados. Dão a isto o nome de horta comunitária de Carajás. Olha só que coisa mais maravilhosa!!! Já havia lido no informativo do clube, que havia esta horta, mas só hoje minha mente ziguezague me conduziu até lá.

Imaginem só que a horta é toda orgânica e apenas duas mulheres se dedicam a ela, uma de manhã e a outra de tarde. Como tudo aqui, a horta tem hora pra abrir e pra fechar, e nela encontra-se desde salsa e cebolinha, até chicória e beterraba. Só depois que meus olhos encontraram com os azuis da Marlene, é que percebi que aquele ser agachado, de calça jeans, bota e chapéu remexendo a terra, era um ser feminino.

Conversamos um pouco e vi que seu real interesse é fazer o que gosta e pra isto não mede os palmos de terra que tem pra trabalhar todos os dias debaixo do sol de 42 graus de Carajás. O que ganham, ela e sua sócia, definitivamente não é medido em reais, porque não passam de centavos o que cobram pelos pequenos molhos de verdura. Acho que o que ganham na verdade, é o mesmo que ando a procura: sentido pra vida.

Parece dramático, mas este é meu tópico da vez e minhas reflexões atuais giram em torno deste mesmo tema. Mas como naquela horta onde Marlene consegue produzir seu verde, cá vou eu tentando produzir esperança pra atenuar a força avassaladora deste momento.

No meio do caminho tinha uma horta e era VERDE.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Tudo pode acontecer

Sentei pra começar a escrever quando ouvi um barulho estranho lá fora. O quarto que uso como escritório e sala de aula fica de frente para a rua, em seguida tem um gramado que termina na floresta. Ou seja, ouço os mais diversos sons. Agora, por exemplo, estou ouvindo o som das cigarras (é fim de tarde) entremeado por cantos de pássaros. Aliás, pássaros aqui é o que não falta.

Bom, mas eu estava falando do som estranho. Pensei em pessoas cantando ao longe, me lembrei até dos rapazes e moças do IME (Instituto Militar de Engenharia) que fazem sua educação física pelas Praias Vermelha e de Botafogo, e que sempre chamam à atenção da vizinhança pela ordem, disciplina e até beleza das músicas ritimadas que cantam, talvez pra ajudar no enfadonho exercício. Imagine estes meninos muito bem aplicados e versados nos números correndo pelas ruas de Botafogo. Só cantando mesmo pra espantar os males.

Volto, então, ao som estranho. Sai da casa e fui até a rua, mas não pude reconhecê-lo. Pensei nos macacos que volta e meia começam a cantar do nada. Como agora por exemplo, estão a berrar e para dar uma idéia de como é o som, pense no barulho daquelas conchas grandes do mar que quando colocamos o ouvido, temos uma sensação de oco e ao mesmo tempo de barulho de mar. Mal comparando, acho que se multiplicarmos este som por infinitas vezes, teremos o som destes guaribas no fim de tarde.

Mas voltando de novo ao som estranho, lamento disapontar, mas não sei o que era. Quem sabe eram índios colhendo castanhas, que é atividade frequente na mata, ou quem sabe estavam em algum dos rituais indígenas.

Acho que estou viajando demais nestes sons mas o fato é que tudo e nada acontece por aqui. É um paradoxo totalmente pertinente. Principalmente se pensar que carona pra índio é algo que não damos todo dia. Ontem aconteceu do Beto estar subindo a serra de Carajás, quando na portaria lhe pediram pra dar carona a um índio que iria pegar sua índia no hospital. Ela havia sido operada de vesícula no Hospital Yutaka Takeda, no núcleo de Carajás.

Beto chegou em casa me contando logo. Estranhei, pois normalmente chega calado e é preciso algum tempo até que, sob o efeito da enxurrada de perguntas que faço, solte algumas palavras. Mas estava indiginado pelo machismo do índio. Me disse, então, que depois de alguma prosa com o indígena, ele falou que a mulher tinha tirado umas pedras da vesícula.

Nada demais, até ele dizer que foi tudo por culpa da índia que não limpa o arroz direito e aí, as pedras vão pro corpo dela.

Mas como eu ia dizendo, tudo por aqui pode acontecer. E como sabedoria indígena é pra se levar em conta, por favor catem muito bem as pedrinhas que encontrarem no arroz, e na dúvida, as que encontrarem no feijão também. Depois enterrem as pedrinhas. Quem sabe não nasce uma plantinha cujo chá exploda os miolos deste macho indígena.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Inércia

Não sei ao certo se fiquei todo este tempo sem escrever (se passam mais de trinta dias sem uma palavra blogada), por conta da minha lenta, persistente e sobrevivente adaptação a estes recantos amazônicos, ou se um fato muito maior que eu e tudo que me cerca aponta-se como o mais emergente de nossa existência.

Meu irmão tem câncer de pâncreas diagnosticado a menos de dois meses. Como diria o paraense, "pense num cara saudável", é o meu irmão, ou melhor era. Alguém que você apostaria que morreria saudável aos 90 anos, caminhando diariamente pela praia como um bom "rato de praia" que é, comendo "mato" como ele mesmo define sua combate-triglicerídeos refeição e dando aulas de inglês aos alunos que agora percebemos como presentes amigos.

Um soco no estômago nos pegou distraídos, nos nocauteou e ainda estamos grogues tentando nos reerguer. Estamos tocando a vida da maneira mais positiva possível, mas volta e meia a sensação dolorosa de que a qualquer momento podemos perder nosso irmão nos derruba de novo. É uma luta que, apesar de querermos pensar diferente, as evidências e nossa racionalidade nos leva a crer que ela nasceu perdida.

Mas então, vem a questão: perdida pra quem? Quem sai perdendo neste jogo? Nós que continuaremos buscando sentido pras nossas existências ou pra ele que diante da possibilidade da não-existência passa a ganhar o real sentido?

E aí outras questões se apresentam: o que realmente tem valor em nossas vidas?

Sou testemunha de que meu irmão é pessoa muito querida. Estava no hospital quando presenciei suas visitas: parentes, que já são esperados e que fazem muito bem trazendo conforto e boa energia, e amigos, que compareceram e telefonaram durante todo o mês de internação. Foram manifestações de amizade que nos impressionaram. Meu irmão com seu jeito prático e direto nos deixou surpresos com sua generosidade e carinho nas relações. Fato que talvez não tenhamos percebido devido a intimidade, às vezes danosa, que cerca as relações familiares.

E ai vem outra questão: no que nos transformamos, quem somos nós depois de 45 anos de vida?Parece pouco se consideramos a expectativa de vida atual, mas foram muitos anos desde que colocamos o pé no chão e passamos a andar com nossas próprias pernas. Tivemos que escolher caminhos, relações, posicionamentos, e agora, a mais difícil das escolhas, como encarar o fato de que um dia vamos embora.

Todo nosso apego a vida deve fazer algum sentido, e acho que realmente faz nestas horas, quando podemos e queremos exercitar toda a nossa humanidade. Talvez ela tenha sido exercitada de forma capengante na luta pela sobrevivência. Pensando bem, acho que sempre fomos náufragos celebrando a praia alcançada. Mas agora, diante da falta de porto seguro, o que fazemos de nós.

Estamos diante da maior das inércias e acho que ela é quem nos salvará. Que a Mão Maior nos conduza ao melhor de nós mesmos e nos faça enxergar algum sentido nisto tudo.

Por ora, estou aqui neste mato sem cachorro, mas pelo menos, voltando a blogar.